quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O real de cada dia por Letícia Rossignoli

O século XX foi determinante para a escrita e estética do jornalismo. O modelo norte-americano massacrou formas outras de narrativas dentro das redações, o que ditava os acordes da orquestra jornalística já estavam dadas nas partituras. Enfim, o leitor se acostumou a ler narrativas diferentes na mesma melodia. Pode-se perguntar: quem é esse maestro tão pouco inspirado? A técnica! É a mesma que colocou abaixo todas as aspirações da modernidade, incorporadas pelo projeto iluminista e que retalhou a escrita do jornalismo em blocos de idéias que são, nada menos, do que respostas caquéticas às perguntas não menos prodigiosas, tais como: o que? quem? porque? e quando? Assim, a complexidade que emana do cotidiano humano foi reduzida a pautas pré-montadas.

Saltemos da escrita para a imagem, sem tirar os olhos da linha que os unem, podemos dizer que os conteúdos do jornal tiverem gradativas mudanças com a chegada de outras tecnologias visuais. A visibilidade técnica impõe-se como modelo estético, inicialmente na televisão, mas também no cinema, nos painéis publicitários e em todas as mensagens visuais (CIRO: 2000). A técnica, neste momento, mesclada com as imagens, reafirma sua preeminência nas matérias do jornal. Primeiro, uma imagem tecnicamente perfeita; depois, um texto, uma narrativa, uma notícia.

Porém, nós, pequenos humanos, que temos a descrença na crença, como crença, insistimos, com fé, na “verdade” das imagens técnicas. Instauramos um real que supera a realidade, “a imagem técnica superou as demais artes na sua tradução do realismo mimético”(JAGUARIBE:2007). Queremos os fatos fabricados, mais dramaticidade, criação de cenas e situações impossíveis de obter na realidade. É um direito nosso que nos ofereçam a melhor técnica/estética. E por que não? Mais enfadonho que o dia-a-dia é a maneira que os jornais contam sobre o nosso cotidiano. Concordo com o mercado montando trocadilho, fatos sem excessos de real não vendem jornal.

Voltemos para a escrita e percebamos que narrativas associados ao curioso, ao insólito, ao imageticamente impressionante ganham mais espaço no noticiário. Informar somente, não basta. É necessário se surpreender com pessoas e coisas. A produção de notícias sobre fatos extra-jornalísticos ou não-jornalísticos começam a compor as primeiras páginas. Entrevistas com candidatos a cargos públicos sobre temas “embaraçosos”, a opção sexual de uma certa personalidade e o problema de saúde de algum líder religioso são exemplos desse realismo sensacionalista que vigora na escrita jornalística.

O apelo que se instaura no jornalismo é o mesmo que vemos nos variados meios de comunicação: fazer com que a imagem ou a narrativa midiática seja mais prenhe de realismo do que nossa realidade individual. Desejamos o que é necessário que façamos (RIESMAN), nos encharcar do real. O jornal como lugar da verdade, imparcialidade e transparência se torna num cálice perfeito para que se transborde o vinho novo, aguçado, odor e sabor intensos. Bebemos dessas taças transbordantes todos os dias e embriagados pedimos por mais.

O jornalismo ainda sobrevive amparado em nosso vício, se reformulando de acordo com a ordem estética, pois não se coloca vinho novo em odres velhos. Encerro propondo que façamos a mesma pergunta que Lacan: “Por que será que tenho, também eu, a sensação que esta profissão não existe, que não tem de fato corpo, estatuto, que as práticas jornalísticas constituem na melhor das hipóteses um conjunto heterogêneo com limites incertos, pronto a se deslocar sob as pressões tecnológicas ou econômicas?”

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