Ana Cristina César foi uma poetisa brasileira, nascida no Rio de Janeiro em 1952, que pertenceu a um grupo de poetas muito importantes para a poesia brasileira contemporânea, revolucionários da linguagem, os chamados “poetas marginais” ou “geração mimeógrafo”. Apesar de sua vida ter sido muito curta – Ana C. suicidou-se aos trinta e um anos de idade – ela deixou um legado significativo para as letras brasileiras.
Em 1979, Ana C. lança um livro chamado Correspondência Completa, em que reproduz o que seria uma espécie de diário, assinado por uma fictícia Júlia, contendo passagens absolutamente cotidianas de uma vida normal, com os sobressaltos comuns à vida de qualquer pessoa: questões sexuais, afetivas, simples relatos de idas ao cinema. Se, por um lado, nota-se nessa atitude uma tentativa – diga-se, muito eficaz – de dessacralizar a linguagem literária, tornando o que seria um prosaico diário numa obra de literatura do mais alto nível, por outro lado pode-se compreender a obra sob a perspectiva da espetacularização da intimidade, comparando-a até mesmo aos blogs, diários íntimos de cuja veracidade pode-se sempre duvidar, que hoje infestam o meio literário virtual.
Paula Sibilia, em seu livro O Show do Eu: a intimidade como espetáculo, analisa a escrita de cartas e diários sob o olhar do espetáculo, ressaltando as diferenças entres os diários íntimos antigos e os que agora são publicados online. Para tal, Paula chega a citar Ana Cristina César, quando esta afirma que “Do ponto de vista de como nasce um texto, o impulso básico é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém; se você escreve uma carta sabe; se escreve um diário, sabe menos”. E Paula completa as palavras de Ana: “Em sua imensa maioria, porém, o mais provável é que esse misterioso alguém fosse apenas alguma faceta do obscuro eu de cada autor-narrador-personagem”.
O mais interessante, no caso do Correspondência Completa, de Ana C., é que os diários são completamente inventados, mas carregam em sua forma efeitos de realismo que o aproximam, enquanto linguagem, à conhecida estética dos diários íntimos, fazendo, a meu ver, aumentar o interesse por sua leitura, uma vez que os leitores do final dos anos 70, quando foi publicado o livro, já começam a demonstrar sua avidez por consumir realidade, ainda que de forma indireta.
Afinal, que outro interesse, senão pela realidade-a-qualquer-preço, poderiam despertar passagens como a que reproduzo abaixo, que constam do livro?
30 de agosto
Hoje roí cinco unhas até o sabugo e encontrei no cinema, vendo
Charles Chaplin e rindo às gargalhadas, de chinelos de couro,
um menino claro. Usei a toalha alheia e fui ao ginecologista.
9 de setembro
Tornei a aparar os cachos. Lúcifer insiste em se dar mal comigo;
não sei mais como manter a boa aparência. Minha
amiguinha me devolveu a luva. Já recebi o montante.
28 de agosto
Dia de festa e temporal. Aniversário da Tatiana. Abrimos os
armários de par em par. Não sei por que mas sempre que se
comemora alguma coisa titio fica tão apoplético. Acho que
secretamente ele quer que eu... (Não devia estar escrevendo
isto aqui. Podem apanhar o caderno e descobrir tudo.)
Um comentário:
A eu quero uma coisa mais clara
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