domingo, 5 de dezembro de 2010

Sobre as possibilidades de um corpo visível por Ana Carolina Frota

O corpo feminino lido pelo seu avesso.
Delicadeza e pungência na obra de Clotilde Lainscek


O texto do site acima trabalha sobre a questão da representação do corpo feminino na arte, levantando questões sobre subjetividade, intimidade e visibilidade.

Daniela Versiani mostra como a artista contemporânea Clotilde Lainscek apresenta uma alternativa para escapar da exposição excessiva na sociedade atual, que mais objetifica e menos permite a visibilidade. Através de uma representação não-realista e esvaziada, em que há um discurso subjetivo que recai sobre as marcas e experiências de um corpo – ausente em materia, invisível ao espectador, mas presente em potência e discurso– , a artista permite a emergência de um possível "sujeito-corpo-feminino".

Em uma sociedade espetacularizada e somatizada, na qual narcisos só se formam no espelho, a imagem é necessária para afirmação e formação subjetiva, ao passo que o corpo, matéria individual e singular, é saturado ao máximo pelo espetáculo. Em uma época de pulverização das fronteiras entre real e ficção, público e privado, os rostos que anteriormente proporcionavam a emergência de uma subjetividade interiorizada, hoje se tornam matéria visível identificável e espalham-se por toda a superfície do corpo.

Os auto-retratos, tão recorrentes, se inserem como veículos de visibilidade e construção de imagem pessoal, mas tendem a limitar-se nos formatos pré-produzidos pelas mídias. As máscaras estão prontas, formadas. São modos de se fazer visível, em forma e ação, e que fazem parte de identidades para o consumo. As representações não se abrem à potência da cena, elas são escolhidas e adaptadas e, quando não mais servem, são trocadas por outras. Nesses moldes, cabem personalidades de reality shows, personagens auto-biográficos, amadores produtores de imagens de si em blogs, fotos, vídeos e demais formas de se mostrar.

A proposta da artista Clotilde Lainscek é ultrapassar a impregnação do corpo, é permitir a subjetividade através do risco de não existir. Com uma representação do corpo que parte de um discurso (a peça de roupa íntima e as palavras) e não de um referente realista, a artista propõe ao espectador que entre e participe de sua formação. A cena é aberta para que máscaras sejam forjadas naquele espaço. O corpo só existe em relação e é pura imagem. Sua visibilidade é formada pela memória do espectador, por todas as representações anteriores, por informações tidas como válidas, por desejos, por tudo aquilo que possa agir sobre ele e que o torna único, singular, possível.

Esse retrato, forjado por um discurso-dispositivo que tenta relacionar-se com o real por via de uma fissura no espetáculo pré-moldado e não por representações, permeia a arte contemporânea como forma de ruptura com os sistemas de poder do Controle (DELEUZE, 1992) e do Espetáculo (DEBORD, 1997). No cinema mais recente, por exemplo, filmes documentários como “Jogo de cena”, de Eduardo Coutinho, ou “Pacific”, de Marcelo Pedroso, ou ainda na ficção de filmes como os de Pedro Costa, trabalham de diferentes maneiras as possibilidades do corpo na cena fílmica.

Esses filmes exploram a idéia (presente na obra de Lainscek) de inserir os corpos espetacularizados em relação com o tempo, com o espaço, com outros corpos, em sua própria ação de construção. Os sujeitos imagetizados a priori são flagrados em construção e, entre uma máscara e outra, existe a possibilidade de algo inesperado pelo próprio filme, mas que só existe naquele instante, naquela situação, experenciada naquela cena.

Ao que parece, a arte contemporânea tem buscado uma outra forma de acesso ao conhecimento e a experiência de real após a saturação dos discursos realistas. Junto a essa busca, incorre o interesse sobre essa matéria de experiência que é o corpo, parte da condição humana mais aparente, que sofre e exerce ações visíveis de suas determinantes. Essas experiências, que trabalham com as possibilidades oferecidas pelas relações (que são múltiplas e indeterminadas) e que se permitem ao risco do desconhecido, jogam com a percepção e com a inscrição do espectador na obra.

Com a abertura da cena (desejada por Comolli no ensaio “Sob o risco do real”), essa arte propõe não uma absorção de imagens feitas para um outro fechado (alter-dirigida - segundo Riesman), mas um jogo em que a imagem é resultado de uma relação complexa, imprevisível e arriscada. Em cena, os corpos dos autores, dos personagens e dos espectadores são expostos à experiência da imagem como local de construção de subjetividades e de possibilidades.

COMOLLI, Jean Louis. Ver e poder - cinema, televisão, ficção, documentário. BH: editora UFMG, 2008.
DELEUZE, Gilles. “Controle e devir”; “Post-scriptum sobre as sociedades do controle”. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Comentários sobre a sociedade do espetáculo. 2ª reimp. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
RIESMAN, David. A Multidão Solitária. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995.

Um comentário:

Anônimo disse...

artista que venho acompanhando a anos e que não se dobra às exigências do mercado.
Incomprável.